Reciclando no Primeiro Mundo:
Bem-vindos à nossa Garage Sale!




No Brasil nós costumeiramente colocamos o lixo no lixo, não? Mas no norte do nosso continente nem sempre o que é lixo acaba no lixo. Aqui, às vezes você pode ver coisas dignas de estarem bem no fundo do depósito de entulhos, lindamente expostos em mesinhas com toalhas, com etiquetas de preço atachadas e os orgulhosos donos das inutilidades todo sorrisos, esperando ganhar alguns centavos com algo que não vale nada...Essa é a minha visão brasileira do que são as famosas garage sales norte-americanas: lixo sendo vendido, e pessoas decididas a comprá-lo. Não porque realmente necessitam do que estão adquirindo, mas sim porque estão fazendo um bom negócio, um big deal, na opinião deles.

Logo que a primavera se instala, começa a febre das garage sales. É plaquinha e anúncios por todo o canto da cidade. Todos querem vender as inutilidades que acumularam durante o inverno, ou que compraram em garage sales no último verão. Eu acredito que os produtos circulam de uma família para outra, numa reciclagem natural, já que o padrão das tranqueiras vendidas é sempre o mesmo: copos e xícaras lascados (geralmente com design dos anos 70), objetos de decoração de plástico e resina (kitsch fica no chinelo), roupas de poliéster ou lã sintética, sofás de cor-de-burro-quando-foge, mesas e mesinhas de todos os tamanhos, mas todas feitas da mesma madeira feia e escura, bicicletas sem marcha (com breque de pé..), roupas de neném desbotadas, e por aí vai...De vez em quando se acha algo diferente, não posso negar, como um relógio feito de cocô de vaca resinado (juro que vi - por $10!), ou qualquer outro objeto inusitado como este.

Se eu não consigo levar as garage sales a sério, pelo menos consegui me divertir com elas. Muitos canadenses iriam me considerar uma herege, pois para eles esse comércio espontâneo e colorido é quase um ritual, uma tradição passada de geração em geração, que tem suas técnicas e sua alta qualidade em entretenimento familiar. Não é só colocar um monte de troço que você não quer no seu quintal ou jardim. Tem a preparação inicial, o planejamento, a propaganda, a técnica da barganha, e mais que tudo, o acontecimento social que ocorre quando você decide fazer a sua venda de garagem.

C O M P R A N D O


Minha primeira excursão às infames garage sales se deu na primeira semana depois que aterrei meus pés no Canadá. Nós não tínhamos nada de utilitário e eu estava montando um apartamento do zero, e precisava de tudo (mas não tuuudoooo...). Minha alegre hostess, que nos recepcionou neste país, achou que era no quintal dos outros que eu iria achar o que era essencial para mim e minha família. E lá fomos nós...Eu demorei meses ate conseguir controlar meu riso, que se afrouxava à visão inacreditável dos produtos à venda... Barganhar em cima de preço de coisa velha e caindo aos pedaços era mais do que absurdo, era uma vergonha. Mas mesmo assim comprei algumas coisinhas. Como jornalista, a primeira coisa que procurei foi uma máquina de escrever. Achei uma alemã, bem arrumadinha na caixa, e funcionando perfeitamente. Big deal! Também comprei um conjunto de pratos (novinhos, me garantiram), um jogo de copos (na caixa fechada, veja só que sorte a minha!), e uma cômoda de madeira. Outros acessórios como abridor de latas que não funcionava, bolsa de água quente furada e persianas de janela do tamanho errado (nunca consegui entender esse tal de "inches"..), foram outros objetos com os quais gastei meu dinheiro.

Eu e meu filho Gabriel passamos meses pedalando nossas bicicletas pra lá e pra cá, visitando todas as garage sales que pudemos encontrar, de mapa na mão e nos divertindo com os achados. É claro que compramos nossas bikes também numa GS! A minha era de lascar, e eu desenvolvi músculos tentando fazer a coisa sair do lugar. Mas pudemos rir muito e ele comprou uma coleção enorme de Turtle Ninjas e Comandos em Ação. Os cacarecos eram irresistíveis para o pequeno Gabriel, que se fartou com todos os gibis, National Geographic magazines, bolas de gude, bagulhos que com certeza iriam acabar também numa garagem sale. E realmente acabaram.

V E N D E N D O


Alguns anos se passaram desde a nossa alegre fase da bicicleta e risos debochados e incrédulos. Garage sales simplesmente encheram. Muito devido a uma amiga canadense, que em nome da sua paixão pelas vendas de quintais, me acordava todos os sábados, bem cedinho, com telefonemas chatorongos me indicando em que rua tinha uma GR com uma barganha fenomenal. Enquanto eu não fosse lá checar o big deal ela não me dava sossego. Eu fui enjoando e aos poucos eu deixei de dar meus passeios nas vendas e até esqueci que elas aconteciam. Mas vocês já repararam na tendência dos seres humanos para acumular quinquilharias e inutilidades? Pois eu não sou exceção...Um dia, arrumando o closet decidi que iria vender tudo numa GR ou jogar tudo no lixo, à maneira brasileira. O Gabriel tinha crescido e amadurecido, e todos os jogos de pinball e futebol de botão, entre outras mil coisinhas estavam empilhados num canto, tomando espaço e empoeirando. Como moramos em apartamento teríamos que usar um meio alternativo para fazermos nossa GS, nos juntando a uma "multi-family sale", quando um dos nossos amigos com quintal resolvesse fazer uma.

Não demorou muito e a amiga com essas qualificações apareceu. Nós então nos preparamos devidamente, etiquetando tudo (com preços superestimados), abolotamos tudo no carro e seguimos para o quintal dos Goetz. Logo de cara vendi meus pratos (aqueles mesmos ainda novinhos) e a máquina de escrever alemã, já não tão útil. Um rapaz ofereceu 25cents por uma antena de TV que eu iria dar de graça: lucro! Foi uma experiência interessante apreciar de perto o processo complicado da barganha, a meticulosa análise da mercadoria, o ritual do vai e vem, tudo muito natural. Participando dessa sale é que eu percebi que a verdadeira função das GS é a socialização e não o lucro. Você vê seus amigos, faz amigos novos, encontra alguém que conhece outro amigo, e tem sempre um papo rolando. No final do dia você conta seu dinheirinho e não deu muita coisa. Eu fiz $10, e gastei $15 comprando pizza para o almoço, mas passei um dia me divertindo, e me livrei do monturo que acumulava nos meus armários. Quer coisa melhor?

É ,mas eu continuo brasileira e cética a respeito desse hábito norte-americano. Garage sale que para os canadenses é um acontecimento natural durante o verão, para mim é uma coisa exótica e humorística.Estamos apenas iniciando, timidamente, a primavera e hoje mesmo já vi uma plaquinha na esquina de casa anunciando uma GS. Ela está solitária fincada num pedaço de grama morta, que o gelo e a neve do inverno mal acabaram de derreter. Mas se eu conheço bem o faniquito desse povo por esse ritual de reciclagem anual, muita gente vai aparecer sábado de manhã no quintal dessa família. Todos animados, que finalmente chegou a hora de vender e comprar. Façam suas ofertas , bem-vindos à nossa garage sale!




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